Cascatas tróficas dentro e entre ecossistemas: atributos dos recursos basais e consumidores modulam os impactos desencadeados por múltiplos predadores de ecossistemas adjacentes

Este post é da autoria de Pablo Augusto P. Antiqueira e conta a #StoryBehindthePaper do artigo Trophic cascades within and across ecosystems: the role of anti-predatory defences, predator type, and detritus quality, publicado recentemente no Journal of Animal Ecology. Utilizando a bromélia-tanque como sistema modelo, Antiqueira e colegas investigam os efeitos de predadores inter-ecossistemas (aranhas mergulhadoras) sobre as presas, outros predadores e os ecossistemas que utilizam. The English blog post can be found here.

Predadores carismáticos, como leões, ursos, leopardos, crocodilos e tubarões, tem frequentemente cativado as pessoas, incluindo os ecologistas. Os predadores desempenham um papel fundamental na estruturação de comunidades ecológicas e ecossistemas. Por exemplo, predadores podem causar alterações nas redes tróficas e no ecossistema, com efeitos alternados, positivos e negativos, nos níveis tróficos inferiores, um fenômeno chamado cascata trófica. Entretanto, os predadores podem ter efeitos distintos nos ecossistemas de acordo com as características comportamentais e local de forrageio. Por exemplo, dos predadores mencionados acima, alguns forrageiam quase exclusivamente em um tipo de ecossistema, como leões e leopardos em ecossistemas terrestres, e tubarões em ecossistemas aquáticos. Por outro lado, alguns predadores utilizam múltiplos ecossistemas em busca de presas, como ursos que consomem animais terrestres mas também peixes, como salmão, em rios e riachos; crocodilos que consomem peixes em ambientes aquáticos, mas também se alimentam eventualmente de mamíferos terrestres, como gnus, nas margens dos rios. Assim, apesar de predadores aquáticos, terrestres ou entre ecossistemas compartilharem as áreas de forrageio, pouco se sabe como a atuação conjunta desses predadores afetam as presas e o ecossistemas compartilhados por ambos. Em particular, não sabemos se a presença de um predador pode influenciar o comportamento de outro predador e, consequentemente, os seus efeitos diretos e indiretos no ecossistema.

A resposta das presas, como herbívoros e detritívoros, e dos recursos que estas consomem (e.g., plantas e detritos) ao impacto de múltiplos predadores também pode ser afetado tanto por atributos de defesa das presas quanto da qualidade de detritos. Entretanto, é desconhecido como a coocorrência de predadores com domínios de habitat distintos, tal como predadores aquáticos e predadores que forrageiam entre ecossistemas aquáticos e terrestres, afetam a sobrevivência de presas com diferentes estratégias de defesa antipredatórias e o funcionamento do ecossistema.  Uma limitação substancial à investigação empírica dos efeitos dos predadores dentro e entre ecossistemas sobre a biodiversidade e os processos ecossistêmicos é a dificuldade de conduzir estes estudos na natureza. Microcosmos naturais, como as bromélias-tanque (Bromeliaceae), são sistemas adequados para estudar a dinâmica das interações ecológicas entre ecossistemas. Os fitotelmatas da bromélia tanque (ou seja, compartimentos cheios de água formados por folhas) e a porção acima da água de suas folhas abrigam, respectivamente, um ambiente aquático e terrestre (Figura 1). Predadores terrestres (por exemplo, aranhas) e aquáticos (por exemplo, larvas de libélula) ocupam este microcosmo natural, muitas vezes compartilhando o mesmo conjunto de presas (Figura 1). Este microambiente compreende uma complexa teia alimentar baseada em detritos que depende principalmente dos detritos acumulados provenientes da copa das árvores. Macroinvertebrados detritívoros (e.g., insetos, crustáceos e anelídeos) participam de uma série de interações facilitadoras na decomposição desses detritos. As bromélias absorvem nutrientes liberados por esse processo de decomposição e também aqueles liberados pelas atividades animais, por meio de tricomas especializados presentes na base de suas folhas. Dessa forma, os componentes da cadeia alimentar das bromélias-tanque podem influenciar a nutrição e o crescimento da planta. O processamento de detritos por macroinvertebrados e o fluxo de nutrientes são, portanto, processos ecossistêmicos importantes dentro do microecossistema de bromélias. Estas características, além da facilidade de replicação e manipulação, fazem deste microecossistema um excelente sistema modelo para investigar como as cascatas tróficas causadas por predadores de diferentes ecossistemas afetam componentes da biodiversidade e do funcionamento dos ecossistemas.

Figura 1. Ilustração do ecossistema tanque-bromélia utilizado no estudo. Utilizámos combinações de larvas de libelinhas (predador aquático) e aranhas (predador transecossistémico) como predadores de topo, múltiplos grupos de detritívoros com defesas anti-predatórias distintas como presas e detritos com níveis de qualidade distintos como recursos basais.

Conduzimos um experimento de campo, utilizando bromélia-tanque como sistema modelo em um bioma de Mata Atlântica no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, Brasil (Figura 2A-B). Nós manipulamos a presença de um predador com habitats terrestre e aquático (aranhas que mergulham) (Figura 2C-D) e um predador estritamente aquático (larvas de zigópteros) (Figura 2E) e, e examinamos os efeitos na sobrevivência de presas (grupos de detritívoros com diferentes estratégias de defesa antipredatória), decomposição de detritos foliares (de duas espécies de plantas diferindo na qualidade foliar – Figura 2F), fluxo de nitrogênio e crescimento da planta hospedeira (Figura 1). Predadores aquáticos e predadores que atuam em ambos os ecossistemas diminuíram diretamente a sobrevivência dos detritívoros e causaram múltiplos efeitos negativos indiretos na decomposição de detritos, na ciclagem de nutrientes e no crescimento da planta hospedeira. No entanto, quando os predadores coocorreram, a aranha causou um efeito negativo não consumível na larva de zigóptero (i.e., alterando o comportamento deste), diminuindo os efeitos líquidos, diretos e indiretos, na comunidade de detritívoros aquáticos e no funcionamento do ecossistema. Tanto os atributos antipredatórios dos detritívoros quanto a qualidade dos detritos modularam a força e o mecanismo dessas cascatas tróficas. A interferência do predador foi mediada por detritívoros indefesos ou com defesa parcial. Entretanto, os detritívoros com defesas antipredatórias escaparam do consumo por larvas de zigópteros, mas não por aranhas. Predadores e detritívoros afetaram a decomposição do ecossistema e a ciclagem de nutrientes apenas na presença de detritos de alta qualidade, uma vez que os detritos de baixa qualidade foram consumidos mais por micróbios do que por invertebrados.

Figura 2. Imagens do trabalho de campo. A-B) Bromélias experimentais em um sub-bosque de Mata Atlântica e Gustavo Cauê O. Piccoli durante o período de trabalho de campo. O predador inter-ecossistêmico (a aranha Corinna demersa) forrageando em um fitotelma de bromélias-tanque (C) e predando uma larva de mutuca (D). O predador aquático de topo (larvas de Leptagrion andromache) forrageando sobre os detritos foliares na água. (E) Detritos removidos do tanque-bromélia após serem consumidos por macroinvertebrados detritívoros. Créditos das fotos: Gustavo C.O. Piccoli

Apesar da importância dos predadores de topo para os ecossistemas, grande parte destes estão em risco de extinção, sendo fortemente afetado por mudanças ambientais causadas pelo homem, como desmatamento, caça e mudanças climáticas. Estes múltiplos impactos tem provocado uma degradação trófica nos ecossistemas, com consequências complexas e muitas vezes desconhecidas. Nosso estudo enfatiza a importância de considerar as interações entre predadores em ecossistemas adjacentes com diferentes domínios de habitat. O conhecimento de tais interações é essencial ao prever os efeitos das cascatas tróficas entre ecossistemas na sobrevivência dos organismos e no funcionamento do ecossistema, e ajuda a prever as consequências ecológicas da perda desses predadores. Nossos resultados também sugerem que tanto os atributos de recursos basais (i.e., detritos) quanto os de consumo (detritívoros) modulam a força e a direção das cascatas tróficas desencadeadas por predadores de ecossistemas adjacentes. As respostas complexas dos ecossistemas e da biodiversidade à perda de predadores e à homogeneização funcional dos consumidores e dos recursos destacam o papel crítico de manter o ambiente com componentes de biodiversidade equilibrados dentro e entre os ecossistemas.

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Piccoli, G. C. d. O., Antiqueira, P. A. P., Srivastava, D. S., & Romero, G. Q. (2024). Trophic cascades within and across ecosystems: The role of anti-predatory defences, predator type and detritus quality. Journal of Animal Ecology, 00, 1–14. https://doi.org/10.1111/1365-2656.14063

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