Esta blog foi escrito por Henrique Negrello-Oliveira e conta a #StoryBehindThePaper do artigo “Across the edge: Spatial segregation drives community structure in tri-trophic multilayer networks at a forest-grassland edge“, publicado recentemente no Journal of Animal Ecology. Este estudo buscou responder se a borda campo/floresta funcionaria como uma barreira ou contínuo ecológico, dada a distribuição espacial das interações entre espécies ao longo da borda
Florestas e campos muitas vezes parecem mundos ecológicos distintos. Mas o que acontece onde eles se encontram? Essa pergunta guiou nossa investigação sobre como as espécies interagem nas bordas de habitats.
Bordas entre diferentes hábitats instigam fascínio. O forte contraste entre continuidade e mudança desperta a curiosidade em todos os tipos de entusiastas da natureza, dentre os quais os ecólogos são apenas mais um grupo interessado. Por que a distribuição das espécies muda em bordas de hábitat? Seriam algumas espécies são especializadas a viver nessa fronteira? Poderiam hábitats distintos ser “conectados” através dos muitos organismos que chamam tais zonas de transição de lar?
Com base nessas mesmas perguntas, eu decidi estudar as bordas entre a Mata Atlântica e os Pampas — que coincidentemente também chamo de lar. Minha cidade natal, Porto Alegre, no sul do Brasil, fica exatamente no ecótono (uma área de transição entre duas comunidades biológicas) onde um “cabo de guerra” entre esses dois biomas acontece há milênios. Os dois biomas são tão importantes quanto ameaçados: A Mata Atlântica, um hotspot de biodiversidade (uma região biogeográfica com alta biodiversidade e muito ameaçada pela atividade humana), hoje cobre menos de 12% de sua extensão original, enquanto o Pampas, apesar de ser o segundo menor bioma brasileiro (cobrindo pouco mais de 2% da área do Brasil), abriga quase 9% das mais de 140.000 espécies do Brasil. Dado que ambos os habitats estão sob níveis tão altos de ameaça, queríamos entender se a borda funcionaria como uma barreira ou contínuo ecológico—uma resposta fundamental para saber como e se as perturbações que afetam um bioma podem se espalhar-se ao outro.
Agora deixando pra trás a questão da “importância” do trabalho, ainda precisávamos escolher um sistema ecológico que pudesse fornecer as ferramentas necessárias para ‘espiar’ a dinâmica que ocorre nessa arena ecológica. Para isso, decidimos coletar vespas-de-ninho-armadilha — um notável grupo de animais, que caça e é caçado por uma infinidade de outras espécies, como aranhas, grilos, lagartas e vespas parasitoides. Preste atenção ao termo em itálico, pois voltaremos a ele mais tarde.
Essas vespas nidificam em cavidades naturais pré-existentes, como aquelas deixadas por larvas de besouros e animais semelhantes. Nos aproveitamos dessa estratégia ao instalar “postes” contendo caules ocos de bambu — os quais são prontamente ocupados por fêmeas procurando por ninhos, e então provisionados com as presas paralisadas, para que seus filhotes consumam as presas ainda vivas. Após a conclusão do ninho, aparecem os parasitoides — que ovipositam dentro dos ninhos, efetivamente roubando os recursos coletados pela vespa construtora. Em seguida, nós entramos na equação: coletamos e abrimos esses ninhos, revelando as interações consumidor-presa e hospedeiro-parasitoide no “unboxing” ecológico mais brutal que você poderia imaginar.

Nossas descobertas revelaram que a borda campo/floresta funciona como uma barreira ecológica, limitando as espécies e suas interações a cada habitat, independentemente da distância da borda. No entanto, também há uma maior riqueza de espécies e de interações próximo à borda, destacando a singularidade e a relevância ecológica desse ambiente fronteiriço. Em outras palavras, embora os habitats estejam provavelmente desconectados entre si, as dinâmicas ecológicas que acontecem na fronteira é onde a maior parte da “diversão” está ocorrendo em cada habitat — o que potencialmente poderia vir a afetar áreas mais interiores tanto dos campos quanto das florestas.
Durante a hercúlea tarefa de identificar centenas de espécies entre os milhares de indivíduos coletados, acabei dando uma atenção especial às vespas parasitoides, um grupo ainda pouco conhecido taxonomicamente, especialmente em países megadiversos como o Brasil. Esse esforço rendeu bons frutos — acabamos coletando os primeiros machos de duas espécies de parasitoide até então conhecidas apenas por fêmeas: Messatoporus elektor e Messatoporus opacus. A cereja do bolo, no entanto, foi a descoberta de uma espécie inteiramente nova — Messatoporus bisignatus — que por coincidência vive a apenas algumas centenas de metros da casa onde eu cresci.

Enquanto ecólogo, é profundamente gratificante desvendar as dinâmicas ecológicas que governam como as espécies interagem, e como diferentes habitats podem ou não ser conectados através delas. Fazer isso enquanto construía conhecimento que poderia ajudar a salvaguardar sua existência só aprofundou esse senso de propósito. Enquanto biólogo, no entanto, tropeçar em uma nova espécie é pura mágica — o tipo de fascínio que pela primeira vez me atraiu para a natureza, e um sonho que todo naturalista carrega em seu coração — e que isso viesse a acontecer a poucos metros de onde eu cresci fez da experiência um reencontro único e inesquecível.

Sobre o autor:
Sou ecólogo e atualmente trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Minha pesquisa foca em redes ecológicas, com um carinho especial por artrópodes e morcegos. Ambos os estudos citados fizeram parte da minha pesquisa de mestrado na mesma universidade.
Referências:
Aguiar, A. P., Supeleto, F. A., Mendonça Jr, M. S., & Negrello, H. (2024). New Species, Host
Record, and Male Discovery for Three Messatoporus Cushman (Hymenoptera, Ichneumonidae,
Cryptinae) from Brazil. Zootaxa, 5471(1), 83-98.
Leia o artigo:
https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/1365-2656.70120
