This blog post is provided by Piatã Santana Marques and is the Portuguese version of their #StoryBehindThePaper for their article “Urbanization can increase the invasive potential of alien species“, which was recently published in Journal of Animal Ecology. This blog post is also a special feature for Black History Month, in which the British Ecological Society (BES) journals are celebrating the work of Black ecologists from around the world and sharing their stories. You can find the English version here.
Sempre fui fascinado pelas histórias que envolvem as atividades de pesquisa, mas que acabam ficando fora dos artigos científicos publicados em revistas especializadas, as chamadas “histórias por trás do artigo”. Essas histórias são bons exemplos de como a ciência costuma estar repleta de reviravoltas e como os pesquisadores têm de superar inúmeros problemas antes de produzir conhecimento científico, especialmente quando a pesquisa envolve longos e exaustivos trabalhos de campo. Por isso, quando a Sociedade Britânica de Ecologia (British Ecological Society-BES) solicitou contribuições de cientistas negros para celebrar o mês da História Negra na Inglaterra, eu fiquei empolgado com a possibilidade de contar algumas histórias sobre o meu mais recente trabalho científico. Porém, enquanto me lembrava de histórias interessantes para incluir no meu relato pessoal, notei que as experiências vivenciadas por um cientista negro podem nos dar uma ideia de como o racismo estrutural pode impactar diretamente a pesquisa científica. Então, aqui vai a minha história.
Minha área de pesquisa é a ecologia urbana e eu busco entender como as cidades afetam as relações entre os organismos que vivem em riachos e sua adaptação à urbanização. Isso é necessário porque as cidades em todo o mundo estão crescendo continuamente e estamos apenas começando a entender as interações recíprocas entre as pessoas e os animais e plantas nas cidades. Em um artigo publicado recentemente na revista científica Journal of Animal Ecology (disponível em inglês aqui), eu e meus colegas estudamos como a urbanização pode afetar o potencial de invasão de espécies não-nativas (geralmente chamadas de pragas). Para isso, nós usamos o peixe guppy, Poecilia reticulata, como modelo de estudo. Para fazer essa pesquisa, eu e minha equipe tivemos que dirigir dentro de um dos maiores aglomerados urbanos do mundo, a cidade do Rio de Janeiro – Brasil, buscando pequenos riachos dentro da vasta matriz urbana. Como se pode imaginar, os riachos urbanos são sistemas muito modificados, contaminados com vários produtos químicos de origem humana. Em muitos casos, os riachos urbanos recebem despejo de esgoto. Isso significa que durante o trabalho nos riachos urbanos nós precisamos prestar atenção nos canos que saem das casas e no barulho de descarga vindo dos vizinhos para evitar um banho surpresa. Por essas razões, nós usamos equipamentos de proteção e roupas impermeáveis que são bem quentes e desconfortáveis de se usar no calor do Rio de Janeiro. Apesar dessas condições, eu e minha equipe aceitamos o desafio de fazer a pesquisa e entender melhor os sistemas de riachos urbanos.

Em nossa pesquisa, descobrimos que a urbanização aumenta a quantidade de alimento para os guppies, em especial pequenas larvas de mosquitos não hematófagos. Os guppies urbanos então se aproveitam da grande quantidade de alimento e comem mais desse mosquito do que os guppies não-urbanos. Essas larvas são muito nutritivas e seu consumo em grande quantidade, faz com que os guppies urbanos fiquem maiores, guardem mais nutrientes no fígado e tenham mais filhotes do que os guppies não-urbanos. Essas características aumentam o potencial de invasão dos guppies urbanos e fazem com que o tamanho de suas populações seja até 26 vezes maior do que as populações de guppies não-urbanos.
O fato de espécies invasoras como os guppies atingirem grandes densidades em ambientes urbanos já é conhecido, mas nosso estudo é o primeiro a mostrar que a alimentação pode ser um importante mecanismo para isso. Mosquitos não-hematófagos são encontrados em grande quantidade nos rios urbanos. Logo, é possível que, não apenas os guppies, mas também outros animais aquáticos e terrestres se aproveitem da alta disponibilidade deste recurso alimentar. Agora, estamos fazendo experimentos em laboratório para saber se conseguimos reproduzir o efeito que a urbanização causa nos guppies urbanos. Essa informação será importante para nos ajudar a entender o sucesso das espécies invasoras nas cidades.
Essa pesquisa foi liderada por um pesquisador negro, então existem mais algumas histórias por trás desse artigo. A comunidade científica está cada vez mais consciente sobre os efeitos do racismo estrutural no meio acadêmico e tem proposto iniciativas para combatê-lo. Por exemplo, a Sociedade Americana de Limnologia (Society for Freshwater Science) recentemente criou uma força-tarefa focada em promover a justiça, equidade, diversidade e inclusão entre seus cientistas. Contudo, a comunidade científica tende a ignorar que cientistas negros também são vítimas de racismo fora do meio acadêmico. Essa é a forma mais brutal e ameaçadora que o racismo toma, mas os cientistas negros não falam sobre isso por considerarem que não faz parte do mundo acadêmico e porque, muitas vezes, envolve situações humilhantes. A seguir, apresento a parte não contada da minha história por trás do artigo.

Durante o trabalho de campo para a pesquisa descrita acima, eu fui frequentemente parado pela polícia militar do Estado do Rio de Janeiro (precisamente cinco vezes em três meses). Em todas as abordagens, apesar de dirigir um carro oficialmente identificado com o símbolo da universidade nas duas portas, o policial me perguntava de quem era o carro e por vezes, revistava o porta malas. Os policiais que me abordavam nunca acreditavam que eu era um cientista fazendo trabalho de campo e eu sempre tinha que dar uma palestra sobre ecologia urbana para convencê-los de que eu não estava mentindo. Ser abordado por policiais é sempre aterrorizante para pessoas negras porque qualquer fala ou movimento “errado” pode ter consequências desastrosas. Homens e mulheres negros têm respectivamente 2,5 e 1,4 vezes mais chances de serem assassinados pela polícia ao longo da vida do que homens e mulheres brancos nos Estados Unidos (Edwards, Lee, & Esposito, 2019). No Brasil, entre 2007 e 2017, 75% das pessoas assassinadas pela polícia militar eram negras (Bueno et al 2019). Especificamente no Rio de Janeiro, a polícia militar já assassinou pessoas negras por confundir um guarda-chuva e uma furadeira com fuzis (notícia aqui). Portanto, a verdadeira história por trás do meu artigo é cheia de tensão e medo de virar mais uma vítima da violência policial. E eu nem preciso dizer que esta situação reduziu minha produtividade na pesquisa. Durante todo o tempo, eu tive que dividir minha atenção entre fazer ciência e planejar o que dizer e como me comportar na próxima abordagem da polícia militar. Por questões de segurança eu parei de carregar comigo qualquer objeto que pudesse levantar suspeitas da polícia. Se guarda-chuva e furadeiras podem parecer fuzis, meus equipamentos de pesquisa também podem parecer armas e nós já sabemos o que acontece quando a polícia militar se confunde.
Eu espero que esse texto possa te dar uma pequena ideia de como os cientistas negros têm que enfrentar a árdua tarefa de fazer ciência e ao mesmo tempo enfrentar o racismo enraizado nas estruturas de algumas sociedades. Eu também espero que esse texto deixe claro que lutar contra o racismo dentro do meio acadêmico é nobre e imperativo, mas não é o suficiente. Nós, cientistas negros e a comunidade negra em geral, não merecemos estar sob o risco constante de sermos mortos pela polícia militar em cada esquina. Para isso, é importante que a comunidade científica se engaje e utilize ferramentas de divulgação e extensão para lutar contra o racismo dentro e fora do meio acadêmico. Historicamente, a ciência tem se provado um veículo de mudanças profundas em nossa sociedade e eu acredito que quando a comunidade científica realmente se comprometer com o combate ao racismo estrutural, nós poderemos começar a ver mudanças reais.
Biografia
Piatã Marques é um ecólogo que consegue ver belezas naturais através do concreto de nossas cidades. Ele fez graduação e Mestrado no Brasil, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ, a primeira universidade pública do país a adotar regime de cotas para promover a diversidade e inclusão de negros e indígenas no ensino superior. Após terminar seu doutorado na University of Victoria no Canadá, ele está de volta a UERJ como pesquisador de Pós-doutorado pelo programa CAPES-PrInt e espera encorajar alunos negros a se tornarem cientistas. Você pode segui-lo no Twitter e Instagram no @urban_streams .
Referências
Edwards, F., Lee, H., & Esposito, M. (2019). Risk of being killed by police use of force in the United States by age, race–ethnicity, and sex. Proceedings of the National Academy of Sciences, 116(34), 16793–16798. doi: 10.1073/pnas.1821204116
Bueno, Samira, David Marques, Dennis Pacheco, and Talita Nascimento (2019), Análise da letalidade policial no Brasil, in: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019, 58-65, http://www.forumseguranca.org.br/ wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf (Oct 5th, 2020).
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