O aquecimento e perda de predadores de topo afetam múltiplos grupos tróficos dentro e entre os ecossistemas

Esta postagem no blog é fornecida por Pablo Augusto P. Antiqueira. Pablo é um candidato pré-selecionado para o Prêmio Elton de 2023, pelo trabalho: Aquecimento e os efeitos diretos e indiretos da perda de predadores de topo em vários grupos tróficos dentro e através dos ecossistemas.

A era atual está profundamente marcada por alterações causadas por forças antropogênicas severas, provocando alterações ecológicas e geológicas evidentes. As altas taxas de extinção de espécies e mudanças no clima estão entre as principais consequências antrópicas que agridem e modificam os ecossistemas. O aquecimento, por exemplo, predito para as próximas décadas, pode afetar diretamente a biodiversidade devido às limitações fisiológicas dos organismos ou através de alterações nas relações tróficas (e.g., interações predador-presa), alterando os padrões de diversidade local e regional das espécies além do funcionamento de ecossistemas.  Entretanto, alguns grupos biológicos chaves, como predadores, podem ser mais sensíveis a esses impactos, e suas extinções podem reorganizar ou reconectar as interações da cadeia alimentar com uma variedade de efeitos indiretos em cascata no funcionamento do ecossistema.

Considerando que os ecossistemas estão conectados pelo fluxo de matéria e energia, muitas vezes através de organismos que transitam entre os diferentes compartimentos, os efeitos antropogênicos podem se propagar entre os múltiplos níveis tróficos, dentro e entre ecossistemas. Por exemplo, mudanças nos ecossistemas aquáticos podem afetar as espécies aquáticas de diferentes níveis tróficos, bem como a interação entre eles. Além disso, como muitos organismos aquáticos (e.g., insetos), possuem ciclo de vida complexo, com fase larval aquática e adulta terrestre, tais alterações no ecossistema aquático podem diminuir ou aumentar a emergência desses organismos para o ecossistema terrestre, o que afetaria os consumidores terrestres que se alimentam desses insetos (e.g., aranhas e formigas). Assim, as alterações antropogênicas podem ser mais intensas do que se imaginava, com efeitos diretos e indiretos que se estendem a múltiplos níveis tróficos dentro e entre ecossistemas.

Ambientes de água doce são sensíveis às alterações climáticas e perda de biodiversidade, além de possuírem alta diversidade e altas taxas de extinção de espécies.  Diante desse cenário, é crítica a necessidade de estudos que abordem, de maneira empírica e objetiva, o efeito das alterações ambientais e bióticas na biodiversidade em sistemas de água doce, e sua conexão com sistemas terrestres. Uma das grandes limitações da realização de estudos empíricos sobre o impacto das mudanças climáticas nos ecossistemas é a dificuldade de conduzir a experimentação em campo (i.e., com realismo), ao mesmo tempo em que seja possível a identificação dos mecanismos ecológicos que ocorrem no sistema. As bromélias-tanque (Bromeliacea), uma planta quase exclusivamente neotropical, são microecossistemas naturalmente adequados para tais investigações, pois suportam uma rica fauna de microrganismos (por exemplo, bactérias, algas, fungos e microfauna) e metazoários (vários grupos de invertebrados, principalmente artrópodes) em uma teia alimentar baseada em detritos. Além disso, as bromélias-tanque são compostas por dois compartimentos diferentes – o aquático e o terrestre – que são interligados pela emergência de insetos, que por sua vez são utilizados como recursos por vários predadores terrestres com estratégias variadas de caça (por exemplo, aranhas cursoriais e construtoras de teia, formigas, centopéias) (Figura 1).

Figura 1. Ilustração do ecossistema de uma bromélia-tanque (Neoregelia johannis) mostrando seus compartimentos aquático e terrestre, habitados por uma grande diversidade de macro e microrganismos de múltiplos grupos biológicos e níveis tróficos: (i) microfauna aquática, (ii) macrofauna aquática e ( iii) predadores terrestres (macrofauna terrestre).

Nosso estudo avaliou experimentalmente, utilizando bromélias-tanque como sistema de estudo (Figura 2), como o aumento na temperatura, previsto para as próximas décadas, e a simplificação trófica causada pela perda de predadores de topo, afetam as relações tróficas em três compartimentos conectados da teia alimentar: i) microbiota aquática (algas, ciliados, flagelados e zooplâncton), ii) macroorganismos aquáticos (macroinvertebrados) e iii) múltiplos predadores terrestres de diferentes grupos funcionais, por exemplo, predadores mais ativos (cursoriais) e estacionários (e.g., construtores de teias).  Nós descobrimos que os impactos do aquecimento e da simplificação trófica em cada compartimento aquático (macro e microorganismos) e terrestre da cadeia alimentar dependem do grupo funcional, nível trófico e do componente da comunidade investigado, ou seja, abundância ou riqueza.

Figura 2. (1-4) Bromélias-tanque experimentais em um sub-bosque de Mata Atlântica, bem como os detalhes da vista superior da bromélia, os aquecedores de aquário e sensor de temperatura dentro dos tanques. Créditos da foto: Pablo Antiqueira. (5) Pablo Antiqueira coletando água dos tanques de uma bromélia para avaliar as comunidades da microfauna e algas. Créditos da foto: Gustavo Migliorini. (6) Uma larva de libélula (Leptagrion andromache), um predador de topo que habita o ecossistema de bromélia-tanque, predando uma larva de besouro da família Scirtidae, um grupo de detritívoros comum que habita microecossistemas de bromélia-tanque. Créditos da foto: Pablo Antiqueira.

A simplificação trófica, causada pela perda do predador aquático de topo, impactou substancialmente os três compartimentos da cadeia alimentar. A simplificação trófica aumentou a riqueza e a abundância de organismos filtradores (larvas de mosquitos – Culicidae) no compartimento da macrofauna aquática, direta e indiretamente, por meio de um aumento na riqueza de detritívoros, provavelmente por meio de uma interação facilitadora. Por exemplo, a atividade dos detritívoros gera partículas finas de matéria orgânica, fezes e microrganismos que se alimentam desse material, que, por sua vez são consumidos pelos filtradores. Assim, o aumento de detritívoros aquáticos após a extinção dos predadores de topo também beneficiou os organismos filtradores, aumentando sua riqueza e abundância. Por outro lado, o rebaixamento trófico diminuiu a riqueza de algas no compartimento da microfauna, diminuindo a entrada de nutrientes das atividades biológicas dos predadores (através das fezes e carcaças de presas).

Além disso, o aumento dos filtradores aquáticos devido à perda de predadores de topo aquáticos desencadeou um aumento nos predadores terrestres por meio do efeito cascata nos ecossistemas. Os predadores terrestres mais ativos responderam mais à simplificação trófica aquática, por meio de um aumento na riqueza de espécies da macrofauna, do que os predadores terrestres mais estacionários. O aquecimento não afetou os micro-organismos ou macroorganismos aquáticos, mas aumentou a abundância de predadores terrestres construtores de teias. Nossos resultados fornecem novas evidências sobre como o aquecimento e a simplificação trófica podem afetar a cadeia alimentar de macro e micro-organismos, não apenas no ecossistema aquático, mas também no ecossistema terrestre adjacente por meio de efeitos entre ecossistemas.

Pablo é um ecólogo interessado nos fatores que regulam a estrutura da comunidade e o funcionamento de ecossistemas. A pesquisa de Pablo visa aprofundar a compreensão de como os elementos críticos das mudanças globais alteram a biodiversidade e o funcionamento de ecossistemas. Pablo é pesquisador de pós-doutorado no departamento de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil.  @Pablo Antiqueira

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